Vacina pouca, meu braço primeiro
Quando a gente tem que filmar a vacinação de idosos para que eles não sejam enganados pela malandragem de um agente de saúde cuja intenção secreta é ficar com a dose do imunizante, aí nos damos conta de que a ética que vigora na Grande Família do Brasil é a de Agostinho Carrara. Lineu e dona Nenê, personagens da antológica série de TV, jamais lançariam mão, por exemplo, no auxílio emergencial, criado para as famílias mais afetadas economicamente pela pandemia da Covid-19, como o fizeram os mais de 680 mil servidores federais, estaduais e municipais, genuínos representantes da Lei de Gerson, gente esperta e que só pensa em levar vantagem.
Há mais de duas décadas dou aulas de Ética em cursos de pós-graduação, quase sempre dirigidas aos gestores empresariais e por isso Ética nas Organizações. Os alunos chegam reticentes em relação à matéria, julgam que será uma sessão de catequese e conselhos morais.
Ao longo das aulas, felizmente, se empolgam com o método participativo e passam a compartilhar suas experiências, comparando as boas práticas e políticas de gestão com e por valores éticos, com ações cosméticas em lugar de ética. São unânimes em apontar os avanços éticos no âmbito da diversidade e da inclusão.
O clima esquenta quando os mais experientes no mercado de trabalho trazem histórias de escândalos empresariais. Como meus alunos vem de absolutamente todos as áreas profissionais, logo se vê que a corrosão da ética se dá em toda parte. Ouvi relatos de gente das engenharias e empreiteiras, escritórios de advocacia e contábeis, marketing, saúde, educação, Terceiro Setor, gestão pública, política, polícia e Forças Armadas, igrejas e organizações religiosas.
Aos poucos entendem que os temas têm muita relevância e podem ajudá-los na hora de atravessarem o temido portal da tomada de decisão e nos dilemas éticos. A ficha cai quando se dão conta de que ética está ligada visceralmente à liberdade e que a vida não tem tutorial ou manual de instruções. As esquinas da carreira profissional demandam postura (héxis) e caráter (ethos), duas raízes para a palavra ética. Ambas convergem num ponto: o cuidado de si e o zelo com a polis.
Enquanto o radical grego ethos se refere aos costumes e à formação do caráter para o exercício da vida na esfera pública, a héxis, outra raiz, remete à postura corporal, à atitude de um atleta numa disputa esportiva ou de um guerreiro antes da luta. A ética como héxis seria uma predisposição corporal para a ação: seja de defesa da comunidade ou de disputa da coroa de louros.
Parece que as estátuas gregas com belos corpos desnudos confirmam essa relação entre ética, postura e predisposição para a ação. Afinal, como alcançar a coroa de louros olímpica sem ter se implicado com disciplina, rigor, pontualidade, renúncia, resiliência, dedicação, determinação e foco?
Quanta héxis está contida, por exemplo, nas medalhas de ouro da gaúcha Daiane dos Santos? Ou do paratleta nadador Daniel Dias? Ou dos profissionais de saúde que se dedicam dia e noite no enfrentamento da pandemia? Bem falou Aristóteles: o caráter de uma pessoa é, em última análise, a soma de suas múltiplas héxeis.
Senhores passageiros
Uma nova safra de alunos, mais impaciente com o conteúdo reflexivo e filosófico, sugere que enfatize mais questões práticas da vida empresarial: código de conduta, governança, protocolos jurídicos, ouvidoria, controles, auditoria, fiscalização, enfim, Compliance.
Mas eu não arredo o pé das ruas de Atenas. Sigo peripateticamente, com ironia socrática, demonstrando a eles que aquela urgência por respostas pragmáticas pode ser válida, mas também pode ser sinal de lacuna e falta de predisposição à introspecção, à reflexão e a héxis que fundamenta a discussão. Como liderar e gerir sem amadurecer a capacidade de escuta, compreensão e diálogo?
A adrenalina retorna às aulas quando convoco Ícaro, o sonhador equivocado das asas de cera, abro a caixa de Pandora, desacorrento Prometeu e chamo Cassandra para depor sobre sua dificuldade em persuadir e antecipar os riscos. Cada aluno toma seu assento na nave de Sofia, apertamos os cintos e sobrevoamos os céus do Peloponeso, contemplando pela janelinha a mítica Atenas onde circulam os adoráveis peripatéticos pelas ruas e becos. Contemplamos lá de cima o rio da dialética de Heráclito e bem de perto, voando ao nosso lado, a Coruja de Minerva – a que alça voo quando as sombras caem, diz o oráculo – nos acompanha.
Imitando a voz piloto de avião, alerto a todos:
– Senhores passageiros, em caso de turbulência, máscaras de oxigênio cairão. Primeiro coloque em si, em seguida ajude a pessoa ao lado…

Carlos Linhares
Colunista
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