O rosto autoritário do poder no Brasil

set/2019

Outro dia, conversando sobre cultura e poder num workshop de lideranças com jovens executivos, comentei sobre as Capitanias Hereditárias e seus capitães donatários, um cargo administrativo do feudalismo tardio português atribuído a membros da nobreza que, por meio de carta de doação e de documento foral, assumiam direitos e deveres sobre determinada capitania. Foi a primeira expressão do poder gerencial na história do país e instituiu uma genética de arbitrariedade e autoritarismo.

A maioria desses capitães-donatários pertencia à Casa Real portuguesa e a doação das terras era uma maneira de premiá-los por seus serviços à Coroa. Eles recebiam do rei plenos poderes administrativos, judiciais e fiscais, sendo a autoridade máxima nas respectivas capitanias. Era seu dever conquistar as terras, povoar, selecionar os colonos mais leais e repartir com eles as sesmarias, explorar economicamente recursos naturais, defender o território do ataque dos indígenas e manter a ordem, aplicando justiça, mesmo com arbitrariedade e violência.  

Fatiando as capitanias, os senhores distribuíam enormes extensões de terra para serem administradas por homens de sua confiança que contavam com o auxílio de capatazes e feitores, homens livres contratados com a função principal de vigiar, controlar a produção e punir os escravos com o uso da força.  

Somando fatores como a distância da metrópole, a dificuldade no trato com os escravos, a resistência dos indígenas, a precariedade do transporte, etc., foi se concentrando um Poder Local extremamente forte e arbitrário, hábil no emprego da força e da coerção, que deu régua e compasso para a formação de vilas e municípios no interior do país, menos como unidades políticas e mais como meras extensões das propriedades dos senhores.   

Os potentados rurais, expressão cunhada por Raymundo Faoro, eram este amálgama de propriedade privada e município, que desde os tempos mais remotos passaram a contar com a proteção das milícias. Os Senhores de Terra eram ao mesmo tempo prefeitos e políticos e também poderiam ser Oficiais de Milícias. Coronéis, suas cabeças haviam sido coroadas.

Esta promiscuidade castrou, desde sua gênese, o surgimento da dimensão política dos municípios e deixou claro que “a relação senhor-escravo e a dominação patriarcal minaram os próprios fundamentos psico e sóciodinâmicos da vida moral, política e institucional de nossa sociedade”, conforme interpretação de Roberto DaMatta em A casa e a rua.

O antropólogo traduz o jeitinho brasileiro como uma reação ao esvaziamento do poder do indivíduo no Brasil, transformado em elo frágil, condenado à exclusão e à pobreza. O imperativo de “dar um jeito” e deixar de ser indivíduo o incita malandramente a tornar-se pessoa, isto é, passar a integrar uma rede de relações de amigos, contar com benefícios e proteção. É sua interpretação:

O núcleo familiar centrado na figura do patriarca é dirigido por princípios de laços de sangue e de coração. Por conseguinte, nossa unidade básica, não está não está baseada no indivíduo, mas na relação. O que vale aqui não é a figura do cidadão, mas a malha de relações estabelecidas por pessoas, famílias e grupos de parentes e amigos. ”  

Sucessores dos donatários, os senhores exigiam submissão e lealdade de seus colonos e meeiros. E cobravam fidelidade aos pistoleiros, leões de chácara, jagunços e capangas. Por sua vez, a tropa miliciana também se achava no direito de reproduzir a cultura da truculência com demonstrações de poder arrogante, abusivo, brutal e sem receio dos limites das instâncias de controle externo.

O imaginário do coronel é composto por traços absolutistas. Engendrou uma cultura de poder baseada na prepotência, na concentração e centralização das decisões, no personalismo ou na confiança em redes de relações, na arbitrariedade, no enfático paternalismo e no nepotismo esclarecido, além de um psicopatológico traço religioso de messianismo, sem mencionar o kit composto de truculência, ameaça de castigo, promoção do medo, amparado pela militarização crescente da tropa de jagunços e capangas.

A Guarda Nacional Brasileira, por sinal, nasceu das milícias. Vários jagunços e seus descendentes viriam a se tornar os prestigiados coronéis e senhores totais nos séculos do Império e da República, 19 e 20. Eliminaram os antigos senhores e ficaram com suas Terras do Sem fim.

E assim, a cultura autoritária se repetiu em outros ciclos econômicos, baseados em outras lavouras: os coronéis do café de São Paulo e Rio, do gado, em Minas, da borracha da Amazônia, do charque dos pampas gaúchos, do açúcar no Nordeste e da saga do cacau da Bahia tão bem descrita por Jorge Amado. O escritor baiano criou um personagem que pode ser o porta voz do espírito autoritário, o Coronel Jesuíno. É ele que adverte a sua esposa, dona Sinhazinha, no romance Gabriela, cravo e canela:

“- Vá para o quarto, se prepare e me espere. Esta noite eu vou lhe usar. ”   

   

Carlos Linhares

Carlos Linhares

Colunista

Psicólogo e antropólogo, mestre e doutor pela UFBA. Atua na UNEB e UNIFACS. Consultor em Organizações, coach, instrutor e palestrante. Sócio diretor da Strata Consulting.
Mais artigos

A potência oculta dos ritos de passagem

Vocês já repararam quantos ritos celebramos nos meses do verão? A temporada começa antes do Natal. Sagrados ou profanos, eles estão presentes nas tradicionais confraternizações que demarcam o fim do ano laboral, com os lúdicos “amigos-secretos”, típicos ritos “de...

ler mais

Priorizar a saúde mental

Foi há uns tantos anos atrás, eu atuava em um RH do Polo Petroquímico de Camaçari, foi quando escutei um operário chamar um colega de chão de fábrica, de Tarja Preta. Rodrigo era seu nome e ele havia usado antidepressivos ao longo de um período da doença. O bastante...

ler mais

Não aperte a minha mente: saúde mental em tempo de urgência

O tempo está passando muito veloz, a velocidade é o novo valor,  virou uma commodity, a regra do quanto mais rápido melhor se consolidou. Não apenas comemos fast food, como também escutamos música e recados no WhatsApp de forma acelerada. E há quem assista filmes em...

ler mais

Os saveiros e a aceleração social do tempo

Um dos produtos mais misteriosos que os mestres de saveiros transportavam nos barcos ancorados no Porto da Barra de minha infância era o Tempo. Traziam todo tipo de mercadoria para abastecer a feira livre do bairro, vindos das mais longínquas praias, muito além da...

ler mais

Pensamento crítico e inteligência artificial

Era o Reino das Matemáticas, no curso de Tecnologia da Informação. Foram vários semestres ao longo de quatro anos, diferentes turmas, mas em cada uma  fui recebido com um misto de cordialidade e desconfiança. Temiam que a disciplina de Psicologia fosse perda de tempo...

ler mais

junte-se ao mercado