Entre a fé e o luto
2018 terminou como começou. Com o Brasil dividido. Se a divisão até final de outubro era entre os que defendiam a “mudança” e os que temiam “aquela mudança”, no início de janeiro a divisão se dá entre os esperançosos na mudança em que apostaram e os desesperançados diante da inevitabilidade da mudança a que se escudaram. O discurso da fé, como a maior parte dos discursos de fé, é conduzido por uma certeza cega; o discurso do luto, como a maior parte dos discursos de luto, é conduzido por uma certeza resignada. Um crê na certeza de um renascimento do país; outro na certeza de um final infeliz. Enfim, tratam ambos, de fatos consumados. Os dois lados ensaiam alguma argumentação racional em defesa de seus pontos de vista, sustentada no histórico de afirmações do presidente eleito. Que, aliás, serve a ambos, igualmente, ainda que de maneira diametralmente oposta. Ou seja, a transparência reveladora dos “méritos” e dos “deméritos” carrega, em tese, a virtude da transparência em si. Ora ajuda a um, ora atrapalha a outro, quando não atrapalha ou ajuda a ambos, mas sempre, finalmente, ajuda a si mesma. Do mesmo modo, com que a excessiva informalidade e a absoluta falta de rito nas atitudes de Jair Bolsonaro são percebidas como simplicidade, por um lado, e como despreparo, pelo outro. Mera questão de opinião, bem se vê. Porque são atitudes que nasceram para “sofrer” opiniões. Talvez, aí se sustente esse acirramento de posições: na insegurança ferozmente reativa em lidar com o incerto, seja para evitar o flagelo do pressentimento do engano, seja para não conceder ao fraquejamento nas convicções. Até porque cada um sabe das concessões e negações a que se dispôs na luta a favor e contra o amigo e o inimigo que dispunham.
O fato é que, contraditoriamente, por mais claro e transparente que se tenha tentado desenhar o governo que se aproxima, todos, no fundo, sabem que clareza e transparência não constituem necessariamente qualidades absolutas, sobremaneira quando escancaram cisões. Usam, agora, tanto a fé quanto o luto como proteção, diante do inexorável. Um inexorável com a agravante da questão “o quê exatamente inexorável?”
Ainda não sei. Mas em 2019 teremos como tarefa descobrir o que, como nação, possuímos em comum. E só daremos esse passo ao tirar as vendas dos olhos para enxergar uns aos outros, admitindo a possibilidade de estarmos errados, abaixando-se assim o muro das certezas cegas, responsável pelo enfraquecimento da razão – tudo o que não precisamos nesse novo começo.
Fé e luto. Euforia e medo. Uma nação pulsando nos extremos. Que Brasil surgirá disso? Alguém, que abstraia da fé ou do luto, saberá dizer? Num país dividido por tantas exclamações explícitas, não seria surpresa que a única consonância seja uma interrogação implícita e, por enquanto, impronunciável.
Karin Koshima
karin@recomendapesquisas.com.br
(Publicado originalmente no Jornal A Tarde)

Karin Koshima
Colunista
Diretora Executiva da Recomenda Pesquisas & Consultoria – especialista no comportamento do consumidor, eleitor e posicionamento de marcas. Às informações derivadas das pesquisas, agrega consultoria em planejamento, estratégia e marketing.
Se formou em psicologia na UFBA, é psicanalista com especialização em Psicologia pela USP (São Paulo), também Mestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia.
Mais artigos
Não aperte a minha mente: saúde mental em tempo de urgência
O tempo está passando muito veloz, a velocidade é o novo valor, virou uma commodity, a regra do quanto mais rápido melhor se consolidou. Não apenas comemos fast food, como também escutamos música e recados no WhatsApp de forma acelerada. E há quem assista filmes em...
Economia da Atenção: como o universo das telas deteriora nossa saúde mental
Repare que a dama do meme que ilustra este texto mal consegue sustentar os coraçõezinhos vermelhos. A Deusa dos likes e das curtidas expressa contentamento e ar de triunfo, afinal recebeu o reconhecimento esperado e capturou a atenção de quem a curtiu. Ela não faz...
Os saveiros e a aceleração social do tempo
Um dos produtos mais misteriosos que os mestres de saveiros transportavam nos barcos ancorados no Porto da Barra de minha infância era o Tempo. Traziam todo tipo de mercadoria para abastecer a feira livre do bairro, vindos das mais longínquas praias, muito além da...
Pensamento crítico e inteligência artificial
Era o Reino das Matemáticas, no curso de Tecnologia da Informação. Foram vários semestres ao longo de quatro anos, diferentes turmas, mas em cada uma fui recebido com um misto de cordialidade e desconfiança. Temiam que a disciplina de Psicologia fosse perda de tempo...
Inteligência Artificial e Ética: como retornar os dinossauros ao Jurassic Park?
No primeiro filme da série Jurassic Park (Steven Spielberg, 1993) três cientistas – dois paleontólogos e um matemático – recebem autorização para visitar a ilha secreta de Nublar onde se desenvolvia um experimento de segurança máxima, sob controle do Governo...
A solidão é fera, a solidão devora
...é a amiga das horas, prima-irmã do tempo, faz nossos relógios caminharem lentos, causando um descompasso em nossos corações. Não tem IA nem Chat GPT que consigam criar versos tão precisos para expressar a dor da solidão como estes do poeta Alceu Valença, salve! Há...
junte-se ao mercado