O necessário preço da incerteza

abr/2020

Crime de responsabilidade. Crime de falsidade ideológica. Interferências políticas na autonomia da justiça. A negação da sustentação de toda a base de um discurso. Gravíssimo.

Freud já nos falava da nossa predisposição natural a recusar fatos que contrariassem a nossa visão de mundo. Já fazíamos isso na infância, quando delegávamos, sem restrições, o poder a um pai soberano, em nome de quem renunciamos à nossa capacidade de arbítrio. Mas até onde iremos nesse infantil fundamentalismo que prescinde a argumentação?

Quero voltar a 2018. O eleitor, tradicional descrente na política e em estado de revolta com o PT, resolve apostar na pessoa de um político. E o populismo, renasce. Há sempre uma instrumentalização de frustrações insuflando esses movimentos. A formação de opinião navegava na troca agressiva de acusações sustentada por discursos que dispensavam fatos, onde qualquer dissenso, surpreendentemente, parecia implicar na anuência com o seu oposto, atestando a superficialidade do pensamento vigente.

Conheço de perto grande parcela dos eleitores de Bolsonaro e a muitos daqueles que lhe delegaram este poder, o fizeram movidos por um sentimento difuso de rompimento com um estado das coisas que dialogava com o próprio desamparo, oferecendo a sedutora saída no raivoso exercício de militância. Muitos descrevem esta opção como sendo um ato que em circunstâncias menos dramáticas, não o fariam. E parte considerável desses eleitores intimamente temiam terem feito uma escolha que conduziria o país a um retrocesso em relação às liberdades democráticas. E hoje, embora neguem, ainda temem – seja para evitar o flagelo do pressentimento do engano, seja para não conceder ao fraquejamento nas convicções. 

Precisamos partir para uma necessária reflexão acerca do que nos conduziu até aqui. A questão agora não é quem errou mais, mas encarar as contradições para romper com essa espécie de alucinação coletiva. Muitos de nós nos deparamos com a verdade que nos foi jogada na cara e precisamos ter a coragem de admitir que o rei está nu. Nossa tarefa agora é refletir sobre a parte que nos cabe nisso tudo para não inviabilizar a sequência do processo democrático. Não temos saída a não ser aproveitarmos essa chance e começar o processo de expurgação, freando a fixação no feroz embate entre quem é o vilão ou o mocinho e nos recriarmos como nação adulta. E só daremos esse passo ao tirar as vendas dos olhos e admitirmos a possibilidade de estarmos errados, abaixando-se assim o muro das certezas cegas, responsável pelo enfraquecimento da razão. Abrir mão do conforto das aconchegantes ilusões infantis é um preço importante a se pagar para chegarmos mais perto da verdade e cessarmos a instrumentalização do fanatismo cego tão insuflado no eleitor brasileiro.

Karin Koshima
karinkoshima@terra.com.br

Karin Koshima

Karin Koshima

Colunista

Especialista no comportamento do eleitor e do consumidor. Consultora em marketing político e pesquisas de opinião.  Mestre em políticas públicas.  
Mais artigos

A terceira via e o sapatinho de cristal

Onde se esconde o candidato-cinderela? O príncipe-eleitor está procurando por ele, de porta em porta, com o sapatinho de cristal da terceira via nas mãos. Alguns candidatos tentaram calçá-lo. Ocorre que até agora pé nenhum serviu. Mas o sapatinho continua aqui.   Nos...

ler mais

Outra política, outro marketing

Imagine ter que vender alguma coisa em que pouca gente acredita. Alguma coisa a respeito da qual todos os argumentos de venda já foram usados e decodificados pelos potenciais compradores. Pois é. Todo profissional de marketing político estará, neste ano, diante dessa...

ler mais

Capitu, o Brasil e suas verdades

Há mais de um século nos debatemos com a inquietante dúvida acerca da suposta traição de Capitu a Bento Santiago, em Dom Casmurro. Dúvida, que até pouco tempo, impossibilitava a nós, expectadores dos fatos históricos, uma visão lúcida do cenário - ora por temermos...

ler mais

Não se iludam, o povo está infeliz

O papel do profissional de pesquisa qualitativa é parecido com aquele da mulher que responde a uma observação sobre o marido, dizendo “não é bem assim, eu durmo com ele, conheço bem”.  No nosso caso, esse “dormir junto” é uma conversa honesta, em que o entrevistado...

ler mais

Uma arena cruel

Vemos em todo o mundo “explosões populares” que expressam: “não aguentamos mais”! A verdade é que o povo, de modo geral, está insatisfeito.  Uma das raízes do problema é a concentração de riqueza, acentuada pela revolução da indústria 4.0 e agravada pelo alto índice...

ler mais

Mudança, um jargão surrado e vazio

O conceito de mudança está presente em toda campanha eleitoral. Candidato de oposição é sempre o candidato da mudança; candidato da situação foi o candidato da mudança um dia. A mesma “mudança” que o elegeu é a que o ameaça na eleição seguinte. Só que, ao pesquisarmos...

ler mais

junte-se ao mercado